Capítulo 33
Os gritos e berros
do público me disseram que meu disfarce tinha desaparecido. Muitos
olhos também se voltaram para Dimitri. Adrian havia acabado com essa
ilusão também, depois de eu ter desfeito a minha. E, como esperávamos,
os guardiões que vinham aos poucos se posicionando ao nosso redor se
aproximaram, com armas nas mãos. Eu ainda acho que aquilo foi golpe
baixo. Por sorte, minha mãe e Mikhail se mexeram depressa para bloquear
os que nos atacavam e deter quaisquer tiros.
— Não — disse com dureza a Dimitri,
pois sabia que ele estava prestes a se juntar a nossos dois defensores.
Era crucial que ele e eu permanecêssemos perfeitamente imóveis para não
sermos considerados ameaças. Até cheguei ao ponto de pôr as mãos para
cima e, relutante, como eu desconfiava, Dimitri fez o mesmo. — Esperem.
Por favor, nos escutem primeiro.
O cerco de guardiões estava fechado,
sem aberturas. Eu tinha certeza de que minha mãe e Mikhail eram as
únicas coisas que os impediam de atirar em nós ali mesmo. Os guardiões
evitavam lutar contra outros guardiões sempre que possível. No entanto,
era fácil derrotar dois bloqueios, e aqueles guardiões não esperariam
para sempre. Jill e Abe, de repente, passaram à frente, se posicionando
perto de nós. Mais escudos. Vi um dos guardiões que nos ameaçava fazer
uma careta. Os civis complicavam as coisas. Adrian não havia se mexido,
mas o fato de estar preso dentro do cerco em si já fazia dele um
obstáculo.
— Nos arrastem daqui depois se
quiserem — disse eu. — Não vamos oferecer resistência. Mas vocês
precisam nos deixar falar primeiro. Sabemos quem matou a rainha.
— Nós também — disse um dos guardiões. — Agora, os demais... recuem antes que sejam feridos. Esses dois são fugitivos perigosos.
— Eles precisam falar — disse Abe. — Têm provas.
Mais uma vez, ele impôs seu
argumento, agindo com confiança sobre coisas de que não fazia a menor
ideia. Apostava tudo em mim. Eu começava a gostar dele. Era meio que um
azar nossas provas não serem completamente concretas como eu esperava,
mas, como tinha comentado antes... eram só detalhes técnicos.
— Deixem os dois falarem.
Era uma voz diferente, mas uma voz
que eu conhecia de cor. Lissa forçou a passagem por entre dois
guardiões. Eles se mantiveram posicionados com firmeza, pois sua
preocupação imediata era a de que não escapássemos. Isso permitiu que
ela atravessasse a barreira, mas apenas até alguém conseguir agarrar seu
braço e impedi-la de nos alcançar.
— Os dois chegaram até aqui. Tinham razão quanto a... Jill.
Caramba, não era fácil para ela
dizer aquilo com serenidade no rosto, já que ainda não havia aceitado a
questão por completo. Minha morte iminente devia ser a única coisa que
desviava sua atenção daquela experiência de sentir o chão se abrir de
repente ao descobrir que, provavelmente, tinha uma irmã. Ela também
depositava muita fé naquilo, confiando que eu dizia a verdade.
— Vocês já os pegaram. Eles não
podem ir a lugar algum. Deixem os dois falarem. Tenho evidências para
sustentar a tese deles também.
— Não sei se é uma boa ideia você falar isso, Liss — lhe disse em voz baixa.
Ela ainda acreditava que Daniella
fosse a assassina, e não gostaria de ouvir a verdade. Lançou um olhar
confuso para mim, mas não protestou.
— Vamos ouvi-los — disse um dos
guardiões. E não era qualquer um: Hans. — Depois da fuga que tramaram,
eu realmente gostaria de saber o que os trouxe de volta.
Hans estava nos ajudando?
— Mas — prosseguiu ele — tenho
certeza de que vocês dois entendem que precisaremos imobilizá-los antes
que façam sua grande revelação.
Olhei para Dimitri, que já tinha se
virado para mim. Nós dois sabíamos no que havíamos nos metido e, para
ser sincera, aquela situação era melhor do que eu previa.
— Está bem — concordou Dimitri. Ele olhou para nossos nobres protetores. — Tudo bem. Podem deixá-los passar.
Minha mãe e os outros não se mexeram de imediato.
— Façam o que ele pediu — ordenei. — Não acabem como nossos companheiros de cela.
Eu tinha certeza de que aqueles
tolos adoráveis não me escutariam. Mikhail, porém, recuou primeiro e,
então, os outros o imitaram, quase sincronizados. Num piscar de olhos,
os guardiões agarraram todos e os arrastaram dali. Dimitri e eu
permanecemos parados, e quatro guardiões vieram: dois para ele e dois
para mim. Adrian havia se retirado com os outros, mas Lissa ainda estava
a alguns centímetros de nós, com toda a sua confiança em mim.
— Continue — disse Hans.
Ele agarrou meu braço com força.
Meus olhos encontraram os de Lissa, e
eu odiava o que tinha a dizer. Mas não. Não era com ela que me
preocupava mais por ter de magoar. Observando o público, encontrei
Christian, que, como podemos compreender, acompanhava o drama com
atenção e avidez.
Tive que me virar e encarar a multidão como um todo, me recusando a ver rostos individuais. Só um borrão.
— Não matei Tatiana Ivashkov — principiei.
Várias pessoas resmungaram, duvidando.
— Eu não gostava dela. Mas não a
matei — olhei para Hans. — Você interrogou o zelador que testemunhou
sobre meu paradeiro na hora do assassinato, não foi? E ele identificou o
homem que atacou Lissa como o que o subornou para mentir sobre onde eu
estava, não é?
Eu havia descoberto, através de
Mikhail, que Joe tinha acabado admitindo ter aceitado dinheiro do Moroi
misterioso depois de os guardiões o encurralarem com a fotografia.
Hans franziu a testa, hesitou e então assentiu para que eu prosseguisse.
— Não existe nenhum registro da
existência desse homem... Pelo menos não entre os guardiões. Mas os
alquimistas sabem quem ele é. Já o viram em uma de suas unidades, agindo
como o guarda-costas de alguém — meus olhos voltaram-se para Ethan
Moore, que estava de pé com os guardiões perto da porta. — Um
guarda-costas de alguém que deixaram entrar para ver Tatiana na noite em
que ela morreu: Tasha Ozera.
Não houve necessidade alguma de
alvoroço por parte do público dessa vez, porque Tasha mais do que
compensou isso por conta própria. Ela estava sentada ao lado de
Christian e deu um pulo da cadeira.
— O que é que você está dizendo, Rose? — exclamou ela. — Você perdeu a cabeça?
Quando surgi ali, desafiadora, pronta para encarar a multidão e exigir justiça, estava cheia de uma sensação de triunfo e poder.
Agora... Agora estava apenas triste
ao encarar alguém em que sempre confiei, alguém que me encarava também
tão chocada e magoada.
— Eu queria ter perdido... mas é a verdade. Nós duas sabemos que é. Você matou Tatiana.
A descrença de Tasha aumentou, marcada agora por um pouco de raiva, apesar de ela ainda parecer me dar o benefício da dúvida.
— Eu nunca, nunca acreditei
que você tivesse matado Tatiana... eu lutei por você. Por que está
fazendo isso? Está se aproveitando da nossa família ser manchada por
Strigoi? Pensei que você estivesse acima desse tipo de preconceito.
Engoli em seco. Tinha pensado que conseguir provas seria a parte mais difícil. Não era nada, se comparado a revelá-las.
— O que estou dizendo não tem nada a
ver com os Strigoi. Quase chego a querer que sim. Você odiava Tatiana
por causa da lei da idade e por ela se recusar a permitir que os Moroi
lutassem.
Outra lembrança me veio à mente, de
quando Tasha soube das sessões de treinamento secretas. Ela havia ficado
chocada, e agora eu desconfiava de que fosse por culpa de ter julgado
mal a rainha.
A multidão estava atenta e pasma,
mas uma pessoa ganhou vida: um Ozera que eu não conhecia, e que, ao que
parecia, tinha a solidariedade à família em mente. Ele se levantou,
cruzando os braços, desafiador.
— Metade desta Corte odiava Tatiana por causa dessa lei. E você está nesse meio.
— Não mandei meu guarda-costas
subornar uma testemunha nem atacar Lis... a princesa Dragomir. E não
finja que não conhecia esse cara — avisei a ela. — Ele era seu
guarda-costas. Vocês foram vistos juntos.
A descrição que Ian havia feito de
Tasha quando ela visitou St. Louis tinha sido perfeitamente clara:
cabelo comprido e preto, olhos azul-claros e uma cicatriz em um dos
lados do rosto.
— Rose, nem consigo acreditar que
isso esteja acontecendo, mas se James... Esse era o nome dele... Fez
algo do tipo, agiu por conta própria. Ele sempre teve ideias radicais.
Eu sabia disso quando o contratei para me proteger fora da Corte, mas
nunca pensei que ele fosse capaz de matar — ela olhou ao redor,
procurando por alguma autoridade e, por fim, se voltou para o Conselho. —
Sempre acreditei que Rose fosse inocente. Se James é o responsável por
isso, então, fico mais do que feliz em lhes contar qualquer coisa que eu
possa saber para limpar o nome dela.
Tão, tão fácil. O Moroi misterioso –
James – passou por quase todos os lugares onde Tasha esteve. Também
havia sido visto em situações suspeitas em que ela não estava, como no
suborno de Joe e no ataque a Lissa. Eu podia salvar Tasha e pôr a culpa
toda naquele homem. Ele já estava morto. Tasha e eu podíamos continuar
amigas. Ela agiu por princípios, certo? O que havia de errado com isso?
Christian se levantou ao lado dela, olhando para mim como se eu fosse uma estranha.
— Rose, como você pode dizer uma coisa dessas? Você conhece tia Tasha. Sabe que ela não faria isso. Pare com essa cena e nos deixe descobrir como esse tal de James matou a rainha.
Tão, tão fácil. Culpem o homem morto.
— James não poderia ter cravado uma
estaca em Tatiana — prossegui. — Ele tinha um problema em uma das mãos.
Um Moroi precisa usar as duas mãos para cravar uma estaca em alguém. Já
vi isso acontecer duas vezes. E aposto que se vocês conseguirem arrancar
uma resposta objetiva de Ethan Moore...
Olhei para o guardião, que havia
empalidecido. Ele podia ser capaz de partir para a luta e matar sem
hesitar. Mas aquele tipo de escrutinação? E um eventual interrogatório
feito por seus colegas? Eu achava que ele não aguentaria. E essa devia
ser a razão para Tasha conseguir manipulá-lo.
— James não esteve lá na noite em
que Tatiana morreu, esteve? E não acho que Daniella Ivashkov tenha
estado também, apesar do que disseram à princesa Dragomir mais cedo. Mas
Tasha esteve. Ela esteve nos aposentos da rainha... e você não reportou
isso.
Ethan parecia querer sair correndo
dali bem depressa, mas suas chances de escapar eram quase tão boas
quanto as minhas e as de Dimitri. Ele balançou a cabeça devagar.
— Tasha não mataria ninguém.
Não era exatamente a confirmação do
envolvimento de Tasha que eu queria, mas chegou perto. Os guardiões
arrancariam mais dele depois.
— Rose! — Christian estava furioso
agora. Vê-lo olhando para mim tão indignado me magoava ainda mais do que
o semblante de Tasha. — Pare com isso!
Lissa deu alguns passos hesitantes à
frente. Pude sentir na sua mente que ela também não queria acreditar no
que eu estava dizendo... No entanto, ainda confiava em mim. Pensou numa
solução controversa:
— Sei que é errado... mas se usássemos compulsão nos suspeitos...
— Nem sugira uma coisa dessas! —
exclamou Tasha, voltando seus olhos penetrantes para Lissa. — Fique fora
disso. O seu futuro está na mira aqui. Um futuro em que você poderia
ser grandiosa e conquistar as coisas de que nosso povo precisa.
— Um futuro que você poderia
manipular — observei, entendendo tudo. — Lissa acredita em muitas das
reformas que você propõe, e você acha que conseguiria convencê-la a
acreditar nas que ela não acredita. Ainda mais por ela estar com seu
sobrinho. É por isso que você lutou tanto para mudar a lei do quórum.
Você queria que ela fosse rainha.
Christian começou a dar passos para a frente, mas Tasha pôs a mão no seu ombro para detê-lo. Isso não o impediu de falar.
— Que idiotice. Se ela quisesse que Lissa fosse rainha, por que mandaria o tal James atacá-la?
Aquilo era um mistério para mim
também, uma das lacunas que eu não tinha conseguido preencher. Mas
Dimitri, sim. Consciente de seus dois guardas, ele chegou um pouco mais
perto de mim.
— Porque não era para ninguém morrer
— a voz grave e ressoante de Dimitri ecoava perfeitamente na acústica
do salão. Ele não precisou de microfone algum para se dirigir a Tasha. —
Você não esperava que um guardião estivesse com ela.
Ele tinha razão, como me dei conta.
Eddie havia sido convocado naquela noite sob circunstâncias estranhas e
quase não conseguiu voltar a tempo de ir com Lissa até Ambrose.
— James provavelmente iria fingir um
ataque e fugir. Isso já seria o bastante para despertar mais
solidariedade por Vasilisa e para ela receber mais apoio. O que com
certeza aconteceu... só que de um jeito um pouco mais severo.
A indignação no rosto de Tasha se
transformou em algo que não consegui interpretar logo de cara. Ela havia
se mostrado ofendida por minhas acusações, mas pelo que vinha de
Dimitri... era mais. Ela parecia genuinamente magoada. Arrasada. Eu
conhecia aquele olhar. Eu o tinha visto no rosto de Adrian algumas horas
antes.
— Dimka, não faça isso também — disse ela.
Através dos olhos de Lissa, vi as
cores da aura de Tasha mudarem, arderem um pouco mais vívidas enquanto
ela olhava para Dimitri. Pude ver exatamente o que Sonya tinha me
explicado, como a aura mostrava afeto.
— E é por isso que fui incriminada — murmurei em voz baixa.
Ninguém me ouviu, a não ser Dimitri e nossos guardiões.
— Hã? — perguntou Dimitri.
Apenas balancei a cabeça. Durante
todo aquele tempo, Tasha ainda amava Dimitri. Eu sabia que ela o amava
no ano anterior, quando propôs a ele que se juntassem e tivessem filhos –
não era algo que muitos homens dampiros tinham chance de conseguir. Ele
recusou, e achei que ela tivesse aceitado ser apenas sua amiga. Não
tinha. Ela ainda o amava. Quando Lissa revelou meu relacionamento com
Dimitri para Hans, Tasha já sabia. Mas desde quando? Eu não tinha
certeza. É óbvio que ela sabia do relacionamento antes de matar Tatiana,
e me culpar pelo assassinato a deixava livre e desimpedida e aumentava
suas chances com Dimitri.
Não fazia sentido trazer à tona seus
motivos pessoais para me culpar. O assassinato de Tatiana era a
verdadeira questão ali. Só olhei para Hans.
— Você pode me levar sob custódia. É sério. Mas não acha que tem motivos suficientes para levar Tasha... e Ethan... também?
Era impossível interpretar o rosto
de Hans. Seus sentimentos por mim sempre tiveram altos e baixos, desde o
dia em que nos conhecemos. Às vezes, eu era uma causadora de problemas
sem futuro. Em outras, tinha o potencial para ser uma líder. Ele havia
acreditado que eu era uma assassina e, no entanto, deixou que eu falasse
para a multidão.
E, na verdade, também não gostava dos meus amigos. O que faria agora?
Hans tirou os olhos de meu rosto e
se voltou para o público, onde vários guardiões se posicionavam, prontos
para agir. Deu um brusco aceno com a cabeça.
— Levem lady Ozera. E Moore. Vamos interrogá-los.
Como Tasha estava sentada entre
outras pessoas, houve um pouco de medo e pânico quando quatro guardiões
seguiram em direção a ela. Tentaram evitar ferir outros membros do
público ao máximo, mas, ainda assim, aconteceram muitos empurrões e
solavancos.
O que veio como uma total surpresa
foi a ferocidade com que Tasha reagiu. Me lembrei de que ela era
treinada. Não do mesmo jeito que os guardiões, mas o bastante para
dificultar que a pegassem. Ela sabia dar chutes e socos – e cravar
estacas em rainhas – conseguindo até derrubar um guardião.
Eu me dei conta de que Tasha talvez
tentasse mesmo lutar para sair dali – apesar de eu não acreditar nem por
um segundo que ela conseguiria.
Estava cheio e caótico demais. Guardiões seguiam em direção à confusão. Moroi apavorados tentavam se afastar da luta. Todos pareciam se enfiar no caminho um do outro.
De repente, um barulho alto ecoou pelo salão. Um tiro.
Grande parte dos Moroi se jogou no
chão, apesar de os guardiões continuarem chegando. Segurando uma pistola
que deve ter tomado do guardião que havia derrubado, Tasha agarrou a
primeira Moroi que conseguiu com a mão livre. Minha nossa, era Mia
Rinaldi. Ela estava sentada perto de Christian. Acho que Tasha nem
reparou na refém que tinha escolhido.
— Não se mexam! — gritou Tasha para os guardiões que ganhavam espaço.
A arma estava na cabeça de Mia e
senti meu coração parar de bater. Como as coisas tinham chegado àquele
ponto? Nunca previ aquilo. Era para a minha missão ter sido limpa e
organizada.
Denunciar Tasha. Mandá-la para a prisão. Pronto.
Os guardiões paralisaram, nem tanto
pelo comando dela, mas porque tentavam avaliar como lidar com tal
ameaça. Enquanto isso, Tasha começou devagar – bem devagar – a seguir em
direção à saída, arrastando Mia junto. Ela avançava lenta e
desajeitadamente, graças a todas as cadeiras e pessoas no caminho. A
demora deu aos guardiões tempo para resolver aquele dilema terrível.
Eles vêm primeiro. A vida de
Mia – a vida de uma Moroi – corria risco. Os guardiões não queriam que
Mia fosse morta, mas também não poderiam permitir que uma Moroi lutadora
empunhando uma arma saísse dali em liberdade.
Acontece que Tasha não era a única
Moroi lutadora no salão. Ela deve ter escolhido a pior refém possível, e
pude notar, pelo lampejo nos olhos de Mia, que ela não ficaria tão
quieta. Lissa percebeu isso também. Uma das duas ou as duas seriam
mortas, e ela não podia deixar isso acontecer. Se conseguisse fazer com
que Tasha olhasse para ela, poderia usar a compulsão para obrigá-la a se
render.
Não, não, não, pensei. Eu não precisava de mais uma amiga envolvida naquilo.
Tanto Lissa quanto eu vimos Mia se
enrijecer para se livrar das mãos de Tasha. Lissa se deu conta de que
tinha que agir naquele instante. Pude sentir isso pelo laço. Pude sentir
seus pensamentos, a decisão e até como os músculos e nervos de seu
corpo se mexeram para a frente para chamar a atenção de Tasha. Senti
aquilo com muita clareza, como se dividíssemos o mesmo corpo. Eu sabia
para onde Lissa iria antes mesmo de ela ir.
— Tasha, por favor, não...
Lissa correu para a frente e seu
grito lamentoso foi interrompido quando Mia deu um chute para trás em
Tasha e se soltou, se abaixando e fugindo do alcance da arma.
Tasha, impressionada diante das duas
frentes, ainda empunhava a arma. Com Mia fora do alcance e tudo
acontecendo tão depressa, Tasha, frenética, fez alguns disparos na
primeira ameaça que se movia na sua direção – e não eram os guardiões se
aproximando depressa. Era uma figura esbelta de branco que gritava com
ela.
Ou, bem, teria sido. Como falei, eu
sabia exatamente onde Lissa iria pisar e o que ela faria. E naqueles
precisos segundos antes de ela agir, me libertei das mãos de meus
captores e me joguei na frente dela. Alguém veio atrás de mim num pulo,
mas chegou tarde demais. A arma de Tasha havia disparado.
Senti uma picada e uma queimadura no
peito e, então, mais nada além de dor – uma dor tão completa e tão
intensa que quase fugia à compreensão.
Percebi que estava caindo, senti
Lissa me pegar e gritar alguma coisa – talvez para mim, talvez para mais
alguém. Havia tanto tumulto no salão que eu não sabia o que tinha
acontecido com Tasha. Existia apenas eu e a dor que minha mente tentava
bloquear.
O mundo parecia ficar cada vez mais
quieto. Vi Lissa olhando para baixo, para mim, gritando algo que eu não
conseguia ouvir. Ela estava bonita. Radiante. Coroada em luz... mas
havia uma escuridão fechando o cerco ao redor dela. E naquela escuridão,
vi rostos... Os fantasmas e espíritos que sempre me seguiram. Estavam
mais nítidos, chegando mais perto. Acenando.
Uma arma. Eu havia sido abatida por uma arma. Era quase cômico. Trapaceiros, pensei.
Passei a vida inteira me
concentrando no combate corpo a corpo, aprendendo a me esquivar de
presas e de mãos poderosas que poderiam quebrar meu pescoço. Uma arma?
Era tão... Bem, fácil. Devia me sentir insultada? Não sabia. Isso
importava? Também não sabia. Naquele momento, só sabia que, de todo
jeito, iria morrer.
Minha visão enfraquecia cada vez
mais, a escuridão e os fantasmas fechavam o cerco e juro que era como se
pudesse ouvir Robert sussurrando no meu ouvido: O mundo dos mortos não desistirá de você pela segunda vez.
Pouco antes de a luz desaparecer por
completo, vi o rosto de Dimitri se juntar ao de Lissa. Eu queria
sorrir. Então, concluí que se as duas pessoas que mais amava estavam a
salvo, eu poderia deixar este mundo. Os mortos poderiam finalmente me
levar. E eu tinha cumprido meu propósito, não é? O de proteger? Eu tinha
feito isso. Tinha salvado Lissa, exatamente como jurei que sempre
faria. Estava morrendo em combate. Nada de calendários para mim.
O rosto de Lissa brilhava com
lágrimas, e eu esperava que o meu mostrasse o quanto eu a amava. Com a
última centelha de vida que me restava, tentei falar, tentei dizer a
Dimitri que o amava também e que agora ele tinha que protegê-la. Acho
que ele não entendeu, mas as palavras do mantra dos guardiões foram meu
último pensamento consciente.
Eles vêm primeiro.
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